3 de novembro de 2014

Pão por (amor de) Deus!

Nunca disse isto a ninguém.
Primeiro porque era assim uma espécie de segredo só meu, que preferi esconder da minha avó, fervorosa adepta do Pão-por-Deus, e depois, bom depois porque ainda nínguem me tinha perguntado nada.
Mas em tendo um blog, e pouca vergonha, resolvi tirar aqui esta pedrinha do sapato e deixar de caminhar assim tão coxa.
Detesto profundamente a tradição do Pão-por-Deus.
Ahhhhhhhhhh que alívio! Sinto-me muito melhor...
Não gostava quando era miúda, não gosto agora, e não fomento essa tradição na minha família, apesar das tentativas meladas para me arrancarem a filha aqui de casa, agarrada a um talego.
Perdoem-me os mais tradicionalista, os religiosos, os seguidores, e todos os que acham graça a esta tradição de deixar, nos dias de hoje, uma criança pequena percorrer as ruas da sua vila, ou os corredores enormes e escuros dos prédios e torres  da cidade, com um talego, uma mochila ou um saco plástico do Continente, para ir bater à porta de perfeitos desconhecidos, gente que não sabemos quem são, o que pensam, se gostam das crianças, se gostam de ser maçados logo de manhã, e várias vezes por dia, por grupos de mini-perfeitos-desconhecidos, em bandos, com caras duvidosas, que raramente agradecem, e que olham para dentro do saco como se tivéssemos metido lá para dentro um rato morto muito mal-cheiroso.
Por amor de Deus e das santinhas!
Não me venham com coisinhas miúdas, de que esta tradição ainda é o que era, porque não é.
Se no meu tempo isto já era sinistro - porque depois daquela empreitada matinal, ainda tinha de dar mil voltas à cabeça para encontrar o local perfeito para despejar as toneladas de maças e laranjas, ou bolos secos e bolorentos, que recebia em todas as casas, sem que a minha mãe sequer sonhasse - hoje então é ainda pior e vai contra todas as regras da educação à qual submetemos as nossas inocentes criancinhas.
Educadas e instigadas quase com tareias de cinto (com a parte da fivela) a não falar com estranhos, e muito menos aceitar 'guluseimas' de estranhos, e depois mandamo-las ir buscar as ditas 'guluseimas' diretamente ao produtor, facilitando todo um plano de ataque da parte do estranho de se aproximar da criança sem ser notado?
- Vai lá filhinha, a mãe fica aqui à espera que não te aconteça nada. Mas só hoje ok? Amanhã retomamos as regras de ouro: não falar com estranhos. 
Sou eu que deliro, bem sei, e as criancinhas vão todos em bando, às duas de cada vez, uma de 7 e outra de 5 anos, e nada pode acontecer.
Ora esta tradição, que já era horripilante quando eu tinha seis anos, e lembro-me bem de um maluquinho uma vez nos abrir a porta todo nu (uma coisa tã' feia, mas tã' feia, benzódeus, que ainda hoje tenho aquela visão demoníaca gravada nos miolos), hoje então não me faz sentido nenhum.
Poderia ter alguma graça, vá, quando vivíamos na aldeia com duzentas pessoas todas da mesma família, ou nos anos 50, onde ninguém roubava crianças - tomara conseguirem alimentar as suas próprias, quanto mais alimentar as crianças roubadas aos outros - mas aqui na cidade, e mesmo nas vilas mais remotas, mandar os miúdos receber bolachas, porcarias doces, mesmo que de boa qualidade, que eu bem sei o que me custou dar os Toblerones ali a dois marmanjos, por conta da tradição?
E se é gente má? E se há um cão solto?
Não me convencem.
Na noite da tradição, depois de me tocarem à porta alguns adolescentes muito mal encarados com ar de quem tinha acabado de acordar, estava aqui em casa numa janta com uns amigos, e já passava das 23h, quando tocaram à campainha.
- Olha, Pão por Deus! - Disse uma amiga.
- A esta hora, não pode ser? Vai lá ver.
O grandalhão aqui da casa, que conta com mais de 1.90m foi abrir. 
Três cabeçorras assomaram-se à porta.
Um deles, que era mais alto (aí um palmo, juro) que o meu marido, acompanhado por outros dois igualmente altos, esticaram os 3 sacos de plástico em direção a ele: Pão-por-Deus!!!
- É lá!! Vocês não estão um bocadinho crescidos para isto??
Eu, que os vi com olhos de quem já viu muito miúdo nesta vida, gritei brincalhona para o grandalhão: olha lá, dá-lhes mas é um cigarro a cada um!

Pois então a que conclusão chego eu?
Que a maioria das tradições já não é o que era, e que mesmo que o nosso saudosismo queira replicar os bons tempos da nossa infância, a verdade é que há certas coisas que simplesmente já não funcionam.
E está bom de ver, que de todos os miudos que me tocaram à porta, 99% eram já bastante crescidos e vinham atrás de dinheiro.
E eu neste caso, e tenham lá paciência, mas sou o Banco Mau.

12 comentários:

  1. Clap, clap, clap. Finalmente, haja alguém.

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  2. Por aqui apareceram umas meninas já crescidotas! E sim, ficaram a olhar para mim com maus modos lhes enfiei umas moedas de chocolate dentro do saco.

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    1. Querem é guita! Da próxima metemos um letreiro na porta a dizer:
      Agência bancária encerrada para balanço.

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  3. Ai então é assim que se traz o pão de Deus para casa? Não sabia.
    Eu, que por acaso sou vidrado nele, compro-o directamente na padaria.
    Já agora também gostaria de saber por que não se podem cozer os ovos introduzindo-os na panela com a água a ferver.
    Uma excelente semana.

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    1. Porque a casca fica agarrada à pele do ovo e o mais importante: racham e ficam escalfados em vez de cozidos.

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    2. Ai racham?
      Então sabes soprar para dentro dum ovo cozido para separá-lo da casca e não sabes cozer um ovo sem rachar? Pois eu ponho os ovos directamente tirados do frigorífico para dentro da água a ferver e não racha nenhum.
      O ovo é oval, não é? Pegas no ovo e ao centro da parte mais larga, com o bico de uma tesoura, ou agulha ou com o que te apetecer e der mais jeito, fazes um furinho pequenino e depois metes a cozer e vais ver a sairem bolinhas de ar lá de dentro.
      É o oxigénio la contido para o pintainho respirar, a libertar-se com o calor, porque senão a dilatação do ar quente dilata o ovo e racha.
      Depois de cozido mergulhas em água fria e com uma coisa qualquer bates o ovo todo para esmagilhar a casca, e depois é só pegar por uma ponta e saca-la toda de uma vez.
      O que a idade não ensina, hem?

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    3. Não sei que ovos são esses, mas os meus se os fervo logo, racham todos.
      Tu cozes os pintaínhos é?
      És um corvo muito mau.
      Mas fico contente que os deixes respirar um pouco, durante o processo.

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    4. Ó menina Uvinha. Deixa de fingir que não percebeste tá? Todos os ovos trazem na parte mais gossa uma caixa de oxigénio para o pintainho respirar.
      Se a galinha não os chocar não é por isso que a caixinha de oxigénio se evapora.
      Fazes um furinho e depois coze-os que ja não racham.

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    5. Já te respondi. Elevei o teu comentário a post. Melhor não posso fazer.
      ;))))))))
      Um grande abraço.

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  4. Cheguei a ir em miúda ao pão por Deus, e achava engraçado. Apesar de nunca levar doces, levava uma "manchinha" de castanhas ou de figos, ou uma laranja. Doces nem vê-los...
    Hoje a coisa está mais industrial... e o haloween veio destronar o pão por Deus. Tudo já parece tão plastificado... foi-se a inocência.

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    1. A inocência em miúdos de 20 anos é igual à minha com quase 40.
      Para o ano não abro a porta a niguém, ainda me aparecem as avozinhas a pedir para dentaduras novas...

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