17 de dezembro de 2014

760 100 760


Talvez eu tenha acordado tarde para esta problemática.
Talvez possa ter relativizado a questão, não sei bem, mas é possível que aquele velhinho ditado da água e da pedra tenha atingido em cheio o meu entendimento e a minha atenção, e os tenha transformado em absoluta inépcia mental.
Mas já se sabe: quanto mais mole é água, mais profundo é o buraco.

Quem é que não experienciou já a típica cena do quadro-mistério na parede?
Um quadro pendurado na salinha das fotocópias vai para mais de dez anos, mas que ninguém se lembra qual é, mesmo que todos os dias aquilo nos entre pelos olhos adentro? É um caso bicudo da psicologia, este de chegarmos a um ponto em que não conseguimos aferir se o quadro é bonito ou feio, ou se tem casas ou montanhas, até que um belo dia, sem que nada o faça prever, acende-se a luzinha do ‘espera lá!’ mas aquilo não é 'O tríptico Três estudos de Lucian Freud', de Francis Bacon?
Como foi possível nunca lhe ter prestado atenção?
Simples. A imagem do quadro desvaneceu-se, foi apagada, e de algo exterior, de estranho, que observo e julgo, passou algures no decorrer do tempo, para algo que se entranhou em mim e que esqueci, escondido que ficou numa qualquer gaveta empenada da memória. Perdi por esquecimento e monotonia a capacidade de o ver, e por isso de questionar. 

O mesmo se passa com o fenómeno do 760 100 760, há anos e anos pendurado nas nossas televisões. É um fenómeno diário e intermitente, que apita estridente como os comboios da estação, mas ao qual deixámos de prestar atenção, e por isso ficou isento do nosso sentido crítico. Da mesma forma que o transeunte rotineiro passa sem olhar o mendigo, também nós olhamos - sem no entanto vermos a realidade - a mendigagem, o peditório, e a reles pedinchice que se instalou nas televisões portuguesas, de mãos estendidas, unidas, numa cabala muito semelhante à publicidade encapotada, através dum peditório constante e inoportuno que se traduz na chamadinha barata e simplória que nos dará a todos o acesso privilegiado ao fantástico automóvel, à fascinante barra de ouro, ao imenso carrinho de compras, à viagem de sonho ao Tarrafal…
Mas perguntam vocês: mas o Tarrafal não é o inferno? É! E o 760 100 760 também, porque da mesma maneira que nunca vimos o inferno, também nunca ninguém viu o prémio.
O 760 100 760 (e as suas variantes) é capaz de ser o maior monstro que o povo português alimenta (além do Fisco) conscientemente e sem qualquer revolta.
Fá-lo e sabe que o faz. Fá-lo e fá-lo TODOS os dias. Fá-lo alegremente e gosta, e repete, e liga de todos os telefones lá de casa, e pede à vizinha para ligar, e pede à filha para ligar, e se preciso for, liga como dever moral, porque tem de ser, porque tentou ontem e não há razão para não voltar a tentar hoje, como se um chip implantado na testa lhe despoletasse um 'ligar já!' à voz estridente e cadenciada do apresentador.

Já ligou o  760 100 760??? Ligue, está à espera de quê? Ligue JÁ! Quanto mais vezes ligar mais hipóteses tem de ganhar!!!!!

E o povo liga, que aquilo até é barato, e o povo liga e dá às televisões milhões e milhões de euros por ano, dá às televisões margens de lucro brutais que permitem às Julinhas e às Fátinhas desta vida ganharem os tais cinquenta mil euros por mês (que horror!) para andarem ora em clínicas de beleza para adelgaçar, ora em feiras regionais a enfardar. E o povo a ligar.
Qual quê! Quem paga a esta gente das televisões é a publicidade, os grandes grupos económicos… Ora, ora, ora, engana-me que eu gosto.
É impressionante como ainda ninguém se questionou (os que ainda conseguem questionar-se) sobre o real motivo pelo qual as televisões portuguesas só passam porcaria para encher chouriços, música pimba até à inconsciência, sempre igual, com as mesmas xantronas de sempre, um verdadeiro desconsolo para os olhos cansados da geração escalavrada, que fazem piruetas com as coxas XXL apertadas em collants XS, ao som da batida enjoativa dos sintetizadores, numa cacofonia estridente e inenarrável, que debita baites e baites de merda musical durante 5 horas por dias, sete dias por semana, quase sempre de óculos escuros. Porquê?
E os bons artistas que cá temos, cadê? Pois… eu também não estou a ver a Maria João Pires, depois de tocar a "Sonata n° 26", de Beethoven, agarrar-se ao João Baião, aos saltos, a gritar 760 100 760. Isso não dá dinheiro.
A cultura não serve esses propósitos.

Já ligou o  760 100 760??? Ligue, está à espera de quê? Ligue JÁ! Quanto mais vezes ligar mais hipóteses tem de ganhar.

E de cinco em cinco minutos gritam alarves apresentadores, que pedincham e mendigam a chamada inocente, aliás, interrompem os cantores e os bailarinos, interrompem a entrevista e o convidado, interrompem a própria rotação da Terra para dizer a frase mágica, aquela que em última instância paga todo aquele circo decadente que se arrasta por esse Portugal fora, enganando tudo e todos, como fazem os ilusionistas, com uma galinha de ovos de ouro debaixo do braço e que só põe os ovos num certo galinheiro. 

Já ligou o  760 100 760??? Ligue, está à espera de quê? Ligue JÁ! Quanto mais vezes ligar mais hipóteses tem de ganhar. Tudo devidamente autorizado pelo Governo Civil de Lisboa, que lá vai mamar o IVA.

O povo que critica a má qualidade da programação que lhe é dada pela TV generalista, ainda não percebeu que é precisamente aquela chamadinha inocente e barata, que paga aquele monte de nada que lhe serve de passatempo. É o próprio povo que paga o seu embrutecimento cultural.
E é isto a verdadeira metáfora da involução.
As pérolas que dão aos porcos são pagas pelos próprios animais.


4 comentários:

  1. Não há quem aguente. Tens razão. É por estas e por outras que (quase) não vejo televisão.

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    1. Estou muito tentada a fazer o mesmo. É vil aquilo que fazem. Metem-me nojo.

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