14 de fevereiro de 2015

Ana Cássia Rebelo

Virada para dentro, num depressão que ocupa a maior parte do seu tempo, a Ana de Amsterdam é a que melhor consegue mostrar-nos as coisas cá fora.
De uma capacidade absolutamente cristalina de expor as fraquezas humanas, destaco um texto, que me ficou na memória, e que diz assim:

Amor maternal

Há muitos lugares-comuns acerca da maternidade; a maior parte deles, por inércia ou simples cobardia, vai-se sedimentando até se tornar verdade absoluta. Nenhum desses equívocos é, por assim dizer, tão falso e absurdo como a imediata emergência do amor filial. É certo que muitas mulheres, com propensão para o drama, choram de emoção mal vislumbram o ser que lhes escorre das entranhas. Ainda os meninos, olhos inchados das conjuntivites neonatais, sonham com o aconchego nacarado do ventre materno, e já essas mulheres lhes chamam meu docinho, meu amorzinho, meu queridinho, amor da minha vida, como se, em vez de um filho, estivessem a chamar por um amante. Essas mulheres, apesar do ridículo a que se sujeitam, sossegam por cumprir o papel de mães dedicadas que lhes compete. A liberdade escapa-lhes, a lucidez também. Porque não se ama quem não se conhece. Um filho acabado de nascer, tal como o sentiu Maria, é um desconhecido. Ainda que uma excrescência solta do seu corpo, não deixa de ser um estranho que de repente invade a vida de uma mulher. Uma mãe precisa de tempo para se acostumar a um filho, mais tempo ainda para o amar. Muitas mulheres levam vários anos até finalmente sentirem amor a um filho. Outras nunca chegam a senti-lo.


A Ana editou recentemente um livro, e o prefácio de João Pedro George vale a pena ler.
Um espírito desassossegado.

Aqui!

17 comentários:

  1. Quando conheci o blogue Ana de Amsterdam li-o de uma ponta a outra, sim, como se agarra num livro que se quer comer inteiro e até nos custa avançar nas últimas páginas. Creio que não será exagero se disser que me apaixonei. Uma vez a Ana escreveu que certo editor lhe teria dito que o livro que escreveu era uma merda, e eu não queria acreditar que alguém recusasse editar-lhe fosse o que fosse. Bem haja a Quetzal.

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    1. Também li isso, e pensei exatamente o mesmo.
      Lembro-me de ela dizer que tinha raiva da outra vizinha que já ia no 4º livro e que o dela nem lho quiseram publicar.
      Talvez não estivesse bom, sabes. Pode ter acontecido. Às vezes a coisa não flui. Mas ela é muito boa.
      Ela vai revê-lo de certeza. E a Quetzal vai publicá-lo.

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  2. O prefácio vale muito a pena ler, concordo.
    Também me lembro desse texto que transcreves, Uva. Aliás lembro-me de vários textos dela, são tão luminosos que nos ficam facilmente na memória. Às vezes parece que falam connosco.
    Mas eu amei cada uma das minhas filhas no primeiro segundo. Tive essa sorte. Portanto, não posso concordar com este texto da Ana. Nem sempre assim acontece.
    Bom fim de semana, Uva. :-)

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    1. Não sei se amei a minha filha logo que a vi, se já amava sem a ver, se nada daquilo era amor.
      Mas o texto é cristal, é assim, é muito assim na maioria das vezes.
      Ela di-lo, sem pejo e sem pudor, sem medo. Gosto dela por dizer.
      Abraço Susana.

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    2. Também eu a admiro por falar sem pejo, sem pudor e sem medo, por ser tão genuína e honesta, admiro-a até muitíssimo.

      Abraço, Uva.

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    3. Comentei este texto no blog de alguém que o publicou. Eu, tal como a Susana com as filhas, amei o meu filho desde que o soube existir dentro de mim. Tinha, até, longas conversas com ele ainda dentro da minha barriga!
      No entanto, o texto está muitíssimo bem escrito, tal como todos os outros da Ana!

      Beijos, Uva e Susana! :)

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  3. Já leio o blogue há muito, quando vi que seria livro ficou com dúvidas.
    Mais um?

    Mas ela escreve muito bem, mas perdoem-me pelo egoísmo, as coisas muito boas não devem ser discutidas em praça pública

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    1. Sim. Há muitos gente que não tem internet.
      Não os vamos privar de ler coisas boas só porque não lêem blogs.

      Creio que não entendi a última parte do comentário.

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  4. Não sei se a autora coincide com a pessoa, mas isso aqui pouco interessa. Li verdade em cada um dos seus textos e isso chega-me.

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    1. Eu gosto de escrever ficção. Por vezes a imaginação leva-me por aí fora, e quando quero regressar já tenho a verdade toda estragada.
      Faço um ponto final e tento redimir-me na próxima vez.
      ;)

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  5. Olha, eu também não.
    Leio muito a Ana de Amsterdam, sou muito agarrada ao estilo. Mas à forma, não ao conteúdo.
    Estou longe, longe, de concordar com este texto. Sei bem que amei cada um dos meus filhos desde todos os segundos anteriores a fazer o teste de gravidez. Sei bem que amei uma criança que não chegou a nascer, durante todos os segundos, minutos, horas, dias, semanas, que ela esteve dentro de mim. E ainda hoje a amo. Nunca a vi, nem sei mesmo se era um rapaz ou uma menina.

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    1. 'Porque não se ama quem não se conhece. Um filho acabado de nascer, tal como o sentiu Maria, é um desconhecido.'

      Não sabemos que tipo de amor estará ela a falar.
      A Ana é muito terra a terra. É por isso que ela diz que não ama quem não conhece.
      É no fundo um pouco como a falta de fé em Deus.
      É não amar senão com os olhos.
      Não é, julgo, o concordar ou não que aqui está em causa, é mesmo a lucidez e as questões que nos coloca a todos, não só mães, mas a todos.

      (Linda, o amor é todo teu. Isso sei eu, que não te vejo, e ainda assim gosto de ti)

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    2. Outro belíssimo exemplo, Uvinha. Também eu não te vejo, também eu gosto de ti.
      Felizmente, os meus sentidos não estão todos concentrados nos olhos. Muito menos os sentimentos.

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  6. Tenho muitas dúvidas se alguma mãe que deseja um filho não o ama desde o momento que sabe que o tem dentro de si. Quanto a Ana, sim gosto e acho que merece um livro sim e até tenho intenções de o ler :)

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    1. O livro da Ana é uma selecção dos melhores posts, creio.

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  7. Esse texto sobre o amor maternal, remeteu-me imediatamente para um livro que se chama "O Amor Incerto" a autora é Elisabeth Badinter, e aí ela faz o percurso do amor maternal ao longo da história, onde tenta demonstrar que o instinto maternal é um mito e que o amor entre mães e filhos pode ser tão frágil como outro qualquer e como outro qualquer faz-se de conquistas, a autora dá vários exemplos, como épocas em que os filhos eram vistos praticamente só como mais uns braços para trabalhar (ainda hoje há sítios em que é assim), e em casas mais abastadas eram entregues a amas, vistos como um estorvo e praticamente só iam ter com as mães para o beijinho antes de dormir e lá iam outra vez com as amas, dá também a autora o exemplo daquelas mães que tendo vários filhos não conseguem disfarçar claras preferências, é muito interessante. E acho que a blogger, tal como esta autora, quando fala em não conhecer, não me parece que isso signifique não ver, mas sim, não ter sabido ainda nada sobre alguém, no que esse alguém se vai tornar, mesmo que esse alguém seja um filho, para poder chegar à conclusão, de que sim, gosta daquela pessoa, nós podemos viver toda a vida com uma pessoa sem a conhecermos verdadeiramente e estamos a vê-la, ela está ali, se assim for o que amávamos não era real, acho que será mais esse o sentido de não se amar quem não se conhece. Por exemplo, a Linda Porca diz que gosta de ti sem te ver, e porquê, porque tem alguma percepção de como serás por aquilo que escreves e identifica-se, perante um recém nascido ninguém tem ainda percepção nenhuma, não sabemos em que tipo de pessoa se vai tornar e de facto eu acho admirável que existam pessoas com lucidez para tocarem em certos assuntos sem tabus e sem se importarem de desalinhar. (Uva, desculpa o tamanho destes últimos comentários, é pores-me no lugar e mandares-me ou estar de dedos parados ou diminuir a tagarelice)

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    1. Eu cada vez gosto mais de te ter aqui a comentar os meus posts caramba, que isto é que é bonito de se ver... de ser ler.
      Tenho de agradecer isto ao Pipoco....

      A Ana não tem tabus. Isso é extraordinário.

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