14 de abril de 2015

Da raiz da solidão

Toda a vida gostei de faróis.
Aquela imponência destemida no meio do mar, enfrentando escarpas, bramindo toscas lanternas contra furacões de ondas gigantes, protegendo as almas marinheiras dos mares sombrios, morte certa, densos nevoeiros.
Nunca contei a ninguém mas o que me encanta no farol, além da sua esguia e altaneira figura, é o faroleiro ermita, homem invulgar, arrebatado pelo encanto das sereias, sedento de água doce, lambendo feridas de sal.
Que faz um homem só, enfrentando as ondas? Que pensamentos terá para dominar o medo? É louco, enlouqueceu, sucumbiu a um desgosto de amor, ou foi deixado para ali ficar, penando, carpindo as lágrimas do mar salgado?
Não sei. 
Morro tanto de pena do faroleiro, como da solidão, deixada sozinha consigo mesma. E morro de pena porque ninguém a quer, mesmo que ela seja bela, profunda, misteriosa, com lábios carnudos e pele nua.
Nua estou eu, que me quedo aqui sozinha.
A solidão lembra-me o meu avô Joaquim, que quase não conheci.
Algures, nas memórias da minha infância moram pessoas imaginárias, feitas de retalhos contados à mesa das festas, nas visitas de domingo. Cada um diz o que pensa, cada um diz o que sabe, e no fim da conversa, agarro nos bocados daquela grande peça, e faço um boneco, um ser imaginado.
Dizia-se na família que o avô Joaquim era pastor.
O meu avô Joaquim foi muito mais do que pastor, pois que em Lisboa não havia cabras e nem ovelhas, pastando nas Avenidas. E ao avô Joaquim, que só conheci em Lisboa, foram conhecidas outras profissões. Mas que importa uma vida frugal em Lisboa, igual a tantas outras, de gente pobre, que cambaleava para chegar a casa, como faziam tantos avós da criançada, quando havia um avô com um pastor lá dentro? Alguém, arrisco, dos tempos da minha infância, tinha, em Lisboa, um avô pastor? Não, ninguém tinha.
Ninguém tinha esse espectro, essa imagem de homem curvado sobre si mesmo, quase ausente de si mesmo, redondo de solidão, olhos parados nas botas cardadas, trilhando caminhos de cabras, com as cabras, sem as cabras, como cabras...
Mas o avô Joaquim foi sempre pastor porque assim o vejo, trajado, mãos grossas e possantes, capazes de pregar um prego com o punho, nos campos perdidos do Alentejo, cantando, dormindo de pé, sonhando acordado.
Ele, as cabras, e o cajado.
Mas um dia, numa conversa sumida na roda da festa, oiço na voz de meu pai uma história, que bailando nos olhos azuis do seu carão sisudo, contava que o seu avô era moleiro.
Moleiro.
Moleiro rima com faroleiro.
Descubro, tarde e inusitadamente, que afinal venho de gente muito só. 
Venho do moleiro, e venho do pastor.
Venho para contar. Tenho alma de escritor. A sós com as minhas palavras. Farol de mim mesma. 
Nunca contei a ninguém.

9 comentários:

  1. Respostas
    1. Gostaste?
      Fui eu que fiz!

      (Hahahahah)

      Eliminar
    2. Ando muito pouco inspirada mas estou confiante que depois da viagem a Amesterdão a coisa melhore substancialmente.
      Trago de lá (na cabeça, espero) coisas muito inspiradoras.
      Já ando a fazer um mealheiro.

      Eliminar
  2. Querida Uva Passa,
    Gente com a solidão dentro raramente anda mal acompanhada. Gostei muito deste, das memórias forjadas de histórias contadas à mesa.
    Beijos,
    Outro Ente.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Querido Ente. partilhamos da mesma opinião.
      Obrigada por estar por aí, atento às histórias desta Uva que Passa.

      Eliminar
  3. Nem sempre solidão é estar só, quantas vezes, rodeadas de gente, nos sentimos um faroleiro, um pastor ou um moleiro??

    ResponderEliminar