13 de maio de 2015

Da incapacidade

É inútil. Já devia saber. Não se aprende nada com o lixo dos outros. Nada.
O lixo de hoje é absolutamente tremendo e, estranhamente, não estou perplexa, nem horrorizada, nem triste, nem chocada, nem revoltada.
Estou incapacitada.
O sentimento é estranho. A incapacidade traz-me à memória a morte. A morte é, a par da incapacidade, o único estadio tão dolorosamente inútil quando aflitivo. Quando somos incapazes estamos mortos para a vida e quando estamos mortos estamos incapazes para a vida.
Hoje de manhã, quando me sentei na secretária, fiquei incapaz de me definir.
Não sabia o que pensar, nem como pensar.
A cabeça, perante a imensa montanha de lixo, começou a fazer o seu trabalhinho no inconsciente lançando para a luz o preconceito, a raiva, os pré-julgamentos ancestrais, a pena, o ódio, a sede de vingança, e tudo o que há de primário nos meus genes ainda crianças. De nada serviu a pujante catástrofe dos pensamentos. Logo veio a incapacidade de definição, a aprendizagem académica, a tecnicidade das ações interventivas, e matou aquilo tudo.
Não há maior treva que a ignorância de nós próprios.
A posição inicial, aquela em que o lixo me apanhou em cheio na cara, deu à luz uns braços indecisos. Os braços tensos, mas sem quererem assumir uma posição que os pudesse denunciar - como a posição de punhos fechados -, acompanharam a respiração do corpo e levaram, perante o cenário dantesco, a mão à boca fechada e tensa. 

O cenário:
Vários caixotes empilhados na rua deserta, aleatoriamente, mostravam-me muitas vidas partidas, muito tempo perdido, muita história macabra. A insustentável miséria humana.
No meio da confusão infernal, de corpos abandonados uns por cimas dos outros, qual esgoto a céu aberto ou vala comum de seres-vivos, fui encontrar dentro de um caixote por detrás de uma carcaça de televisão vários pais incapazes e de famílias desfeitas, sobretudo pela voragem da modernidade, que me olhavam com olhos suplicantes e rasos de água.
Fui mais uma vez incapaz de perceber se eram de verdade ou se eram espelhos.
Seriam espelhos de gente de verdade?
Ali perto, um grupo de crianças muito maltratadas, famintas, abandonadas aos delírios da juventude, socialmente anárquicas e emocionalmente mortas, conversavam entre elas. Julgo mesmo que não se apercebiam da miséria em que se encontravam, talvez ali estivessem há muito tempo, talvez nunca dali tivessem saído.
Afastei-me cabisbaixa.
A minha opinião é agora vaga e errante.
Sou absolutamente incapaz de entender isto.



Cuidado: Este vídeo não é para meninos.
Atualização: o vídeo foi retirado do Youtube 



14 comentários:

  1. Eu consigo entender o que leva a isto (no sentido do que causa estes comportamentos), não consigo (e não quero) é aceitar. E espero que a nossa sociedade cada vez aceite menos. É que ainda há quem ande por aí a dizer que são coisas de miúdos e que no tempo deles também era assim e ninguém morreu.

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    1. Uma das miúdas é filha do presidente da Câmara.
      Supostamente só os delinquentes têm comportamentos desviantes.
      Antigamente é que era bom.
      Se fosse minha filha havia de ficar negra de porrada.
      Era deitar-lhes o fogo.
      Tem tudo do bom e do melhor. Uma fome de três dias e metia-as logo na linha.
      Casa corretiva com elas.


      Tudo isto é o que dizem pessoas como eu. É por demais brutal. parecem bichos do mato acossados.
      Não sou capaz. Não sei porque foi, e nem porque não foi. Alguma coisa está muito errada nestes miúdos. Podiam ser meus. Podia ser eu.
      A mim morre-me muita coisa. Muita coisa mesmo.
      Adoro adolescentes de paixão. Mas isto assim não dá para perceber.
      Fiz tilt, como se diz na gíria.

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    2. Os colégios privados supostamente "topo de gama" estão cheios de comportamentos destes. O meu afilhado anda num deles e foi cuspido e batido pelos colegas na 1ªclasse, entre outras coisas. Anda aí muito menino de uniforme sem educação nenhuma.

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  2. Hoje quando fui almoçar estavam a passar este vídeo nas notícias e não fui capaz de ver até ao fim, tal foi a raiva que foi crescendo em mim... e também não fui capaz de continuar a comer...
    Titá Negrão

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    1. Também não vi todo, aliás só vi um ou dois minutos. Fiquei cheia de vómitos.
      Ainda estou mal disposta.

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    2. E somos duas!!! Fiquei com o estômago embrulhado e só vi para aí 1m!!!!

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  3. É como se fosse num outro mundo!
    Felizmente, os adolescentes que se sentam nas "minhas" carteiras, debateram hoje o assunto com repugnância pelas personagens desta história triste. Ao menos, serviu para despertar sentimentos de rejeição pela violência!

    Beijos, Uvinha. :)

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    1. Tu que tens tanta experiência Maria, és um bocadinho os nossos olhos.
      Eles não são na maioria assim dementes, pois não?

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    2. Não são, de todo! São infinitamente melhores! Acredito neles, esses miúdos que me vão passando em grupos pela frente. Vejo-lhes a ingenuidade de acreditarem que o mundo se divide entre bons e maus e de que devem combater os últimos com vontade! Debato com eles (a minha disciplina dá para fazer isso de vez em quando) , muitas vezes, notícias de violência, catástrofes, entre outros assuntos que podem fazê-los reflectir e aprender a aceitar os pontos de vista do outro, construindo o seu de forma mais informada.
      São uns miúdos fantásticos, acredita!

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  4. daqui a um mesito estão no aeroporto de Ankara a caminha da Síria. Bom bom era por lá ficarem.

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  5. "Não há maior treva que a ignorância de nós próprios."

    O vídeo foi retirado. O que não se mostra, não aconteceu.

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    1. Já vi. Fico sem saber (outra vez) se foi melhor ou não.

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  6. os donos dos animais já foram responsabilizados? os animais têm tarefas comunitárias atribuídas para os próximos 10 anos?

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