11 de setembro de 2015

As (torres) gémeas

A infância, a minha infância, foi um paradoxo entre a falta e a abundância, entre o pouco e a fartura, entre a casa e a rua, entre o esforço e a liberdade.
Na minha casinha de duas assoalhadas, com quintal e baloiço, onde vivi as maiores aventuras da minha vida, sem comparação, faltava muita coisa e não faltava nada, havia falta de muito e fartura de tudo, e nem sequer se poderia dizer que aquilo que me faltava em bens materiais, coisa que só tomei consciência do que era mais tarde na vida, era compensado pela presença filial.
Com certeza que não estava abandonada à minha sorte, e que ali por perto, nos outros quintais, não houvessem mil olhos vigilantes das tropelias da russa de má-pêlo.
Pelo contrário, na minha solidão de filha única tive sempre muitos irmãos.
Também eu fui filha de pais trabalhadores a tempo inteiro, com pouco tempo para puzzles e para vestir e despir bonecas depois do trabalho.
Tendo em conta que nunca tive um puzzle, e a boneca era eu, restava pouca ou nenhuma atividade parental para estruturar e preparar a miúda rabina para uma vida adulta de sucesso.
Hoje, uma menina pobre e sem os pais por perto, acabará certamente num centro de detenção juvenil.
Não foi o caso.

Hoje celebra-se mais um 11 de setembro, e eu não posso deixar de pensar nas torres que ruíram na minha vida.
As minhas torres gémeas, altas, próximas, e tão iguais a mim, caíram por terra e, tal como o Groundzero, também as minhas [torres] lá deixaram um buraco imenso que verte lágrimas incessantes, depois de anos e anos a remoer e a remover entulho.
Fiquei eu, e os que ali viviam, impregnados de um fino pó tóxico, que se entranhou na pele e nos ossos e nos provocou a todos - e persiste, um certo desconforto e uma imensa tristeza.
As torres eram às vezes coisas estranhas, áridas, duras, inclementes quando nos devolviam a luz intensa do sol e nos magoavam os olhos e os ouvidos e a esperança, mas por outro lado, se nos aproximássemos mais do imenso prédio a fervilhar de gente, que no caso representa os vários membros da família, poderia proteger-nos de tudo.
Um dia corria para casa da minha mãe e era bom, no outro corria para a casa da minha avó, e era bom, no outro corria para casa das minhas primas, e era bom, no outro corria dali para fora porque a minha avó me dava uma nalgada e era mau, a minha mãe dava-me muitas nalgadas e era mau, e assim sucessivamente, correndo de um lado para outro, procurando saber e aprender o que me fazia mais feliz.
Era muito mais livre então, com as minhas torres áridas, de apartamentos simples e de gente pobre, do que sou agora quando entro no meu apartamento mobilado, o escritório aquecido, o emprego fixo, e julgo, para não me afundar mais, ter o futuro do amanhã nas mãos.
Já não tenho para onde correr, porque a minha avó partiu de casa, e depois a torre ruiu.
Já não tenho para onde fugir porque a minha mãe se enfiou em casa, e depois a torre ruiu.
As minhas torres primas ruíram. As minhas torres tias desabaram. O buraco é imenso.
A minha infância plasma-se numa fotografia antiga e eu penso, agora, que se calhar a coisa mais difícil de fazer, ainda que sejam necessários anos e anos de preparações, projectos, definições, dois aviões, mentiras e enganos, não é deitar as torres abaixo.
É conseguir mantê-las de pé.


14 comentários:

  1. Quando vi o título ia para fazer um comentário daqueles ao meu jeito, ou seja, estúpido!
    Depois de ler perdi a vontade de o fazer!

    Sim, tens razão! É mais difícil mantê-las de pé do que fazê-las ruir!

    :)

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    1. Eu quero que faças sempre os teus comentários no meu blog. Pode ser? Mesmo que tu os aches coiso e tal.

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  2. Que texto incrível, sem tirar nem pôr!

    :)

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  3. Julgava-me maduro, pela vida empedernido, pela experiência vivida, intensa...
    Leio teu texto e há uma tal intensidade que me sinto pequenino, como se nada tivesse vivido

    Não ligues, porque até nem é verdade e, afinal...
    acho até que era vizinho desse teu quintal

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  4. Simplesmente arrebatador, como quase tudo o que escreves.
    Beijinho Uva

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  5. Esta Uva escreve como se tivesse sido amadurecida em cascos de carvalho.

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  6. És mesmo linda!!!!

    Beijocas repenicadas. :)

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    1. Tu é que és a poeta e eu é que sou linda? Conta-me coisas...

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  7. Que texto magnífico. Descobri-a hoje e não a largo mais.

    M.Pereira

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    1. Olá e obrigada M. Pereira.
      Querem lá ver que somos família? Pereira é um dos meus apelidos, ainda para mais o mais querido.

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