30 de junho de 2016

Roman-fleuve

Outra das razões porque deixei de escrever foi precisamente a minha queda para o título. O roman-fleuve.
Ninguém gosta de chegar a um virtual-sítio e dar de caras com um post-rio, um post onde se denota que o escritor está totalmente enfeitiçado pela sua escrita, pela sua capacidade de meter nas letras o estado hipnótico, o estado lastimável de overdose de feitiço literário, o ego inflamado com as frases maravilhosas que se desprendem do tacto, em última análise, o romance que ali vai entre quem escreve e o escritor.
Ninguém tem respeito por quem escreve, sejamos pragmáticos. As pessoas buscam quem as faz rir, quem imprime um humor desmedido e uma ironia fina ao seu rio de letras. Se encontram pela frente alguém que era capaz de fazer como Proust, que riquíssimo forrou uma sala a cortiça só para não ouvir mais nada senão os seus pensamentos, clicam na opção chato e desarvoram, desaparecem, e às vezes vão fazer queixinhas a outros, que igualmente sedentos de trivialidades, concordam e denigrem.
Por isso é que concordo totalmente com a Picante, quando ela me diz que quem tem bons blogs tem a casa vazia; por isso é que eu meneio a cabeça quando oiço dizer que a Guidinha já vai no seu 23º livro, e que espanto de sala cheia foi o lançamento.
Obviamente que a minha linha editorial é maçadora e massacrante. Sou viciada em perfeição, demoro horas para fazer uma merda de um requerimento ao Ministro dos Negócios Estrangeiros e quando vou dar aquilo a reler, as pessoas perguntam-me se estou apaixonada por ele. Faço de tudo um romance, escrevo para mim, para me convencer que posso e sei escrever, e que só não o faço à séria porque não sou rica como Proust, não posso forrar nada a cortiça, não tenho sobreiros, não tenho terras, já não vivo no Alentejo.
Também porque quando começo a escrever não sei sequer com que finalidade o faço. Nas aulas de escrita criativa, onde fui muitas vezes aplaudida, sobretudo nos dias em que ia sair à noite e vestia mais qualquer coisa em cima de um dia merdoso de trabalho, o professor ensinava que nunca se deve começar a escrever sem ter a história na cabeça. Estou condenada, não há cortiça, sobreiro ou Proust que me salve.
Não tenho nada na cabeça.
E como reparam - quem teve a paciência (e o amor) para me seguir até aqui -, fiz outra vez um rio de letras e não disse nada. Fiz um roman-fleuve.
Continuo no entanto sem perceber, agora só para despistar, como é que Proust (que está a 10,00€ na Relógio D'Água) consegui fazer aquilo que fez, fechado numa sala, em silêncio, sem ouvir a vida, sem ver correr rio algum.
É um dom.
Que infelizmente não tenho.
Porque sou pobre.
De espírito.


23 comentários:

  1. Uva, Uva, Uva... Se me permite, já permitindo, quem tem um blog que à partida não nasceu por si e para si mesmo, acaba a falar como a Uva. As pessoas cansam-se, umas vão, outras ficam e outras virão. Nada de stress - Escreva para si, porque gosta e do que gosta. E receba quem vier e fica, ou simplesmente passa, com a mesma atenção com que que recebe os fãs fidelíssimos, deste modo nunca se sentira defraudada, porque antes de tudo o blog é seu e para si - Todo o que vier a partir dai, é lucro. :)

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    1. Que palavras maravilhosas. Eu nem sei que diga.

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    2. Não diga, adopte, vai ver que tudo fica mais leve :)

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  2. Entretanto, vou continuar a passar, como sempre que posta :)

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    1. :) a pachorra é uma grande virtude. ;)

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    2. Com esse discurso boumimbora ahahahah Porque não, simplesmente gostar do que escreve e do modo como o faz?
      Assim nascem os seguidores :)

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    3. Goooooooollloooooooooooooooooooooooooooooooooo!!! Ganhámos!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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    4. Somos os maiores nos penaltis :)
      É o nosso lado fatalista, de fado, destino de sofredores eheheheh

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  3. Como pobre
    de espírito?
    Nunca!
    Não tenho essa ideia dos blogues, tenho uma espécie de classificação e vou a blogues diferentes pelas diferenças que os tornam especiais, o teu está decididamente entre os bloguistas que escrevem muito bem (e não só, no outro dia estava a lembrar-me também dos posts sobre fotografias e artistas, o que me permitiram descobrir) - ter as casas cheias pode depender de outros factores, mas creio que um deles também será, ser capaz de escrever como tu escreves e um dia, poderemos ser muitos mais a descobri-lo, a não arredar daqui, e esta casa ficará super cheia.
    um beijinho
    Gábi

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    1. Ohh Redondinha, que prazer ter-te aqui e de alguma forma te ter ficado na lembrança!

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    2. Ohh Redondinha, que prazer ter-te aqui e de alguma forma te ter ficado na lembrança!

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  4. Com cortiça
    ou sem cortiça
    Dou-lhe uma boa noticia
    Passou no meu check up
    NÃO É AUTISTA

    (se não fosse o golo Renato...
    não tínhamos empatado
    e, assim,
    nem estaríamos a dar vivas
    por Rui Patrício
    ter defendido)


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    1. Para mim o Pérola Negra é um grande jogador! Conheço muito bem a Musga (Musgueira), e aquilo precisa bem de exemplos como o dele! Para mim é uma maravilha de puto pá. O Patrício, só é pena ser Lagarto, mas sim, fez aquela defesa.

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  5. O professor estava errado!
    Escrever sem a história na cabeça é uma verdadeira aventura de descoberta de uma história que é contada pelos personagens!
    Quando me sento para escrever "a sério" - coisa que já não faço há bastante tempo, simplesmente porque não me apetece e tenho coisas melhores para fazer... - faço-o sem objectivos!
    O meu último romance foi uma surpresa tão grande para o editor como para mim! faltavam-me escrever umas vinte páginas, coisa que eu ainda não sabia na altura, o editor perguntou-me:
    -Olha lá, mas afinal o livro é acerca de quê?
    E eu respondi sinceramente:
    -Não faço ideia, mas quando descobrir digo-te!
    Descobri dois dias depois quando o acabei...

    Quando já sei uma história de ponta a ponta perco todo o interesse em escrevê-la! Só escrevo as histórias que ainda não conheço!

    Quanto ao resto, pormenores!

    "Abençoados os pobres de espírito porque deles é o reino dos céus!"

    :)

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  6. Porque te enfeitiças pela tua escrita e tens o dom de enfeitiçar quem te lê. E eu leio-te, não desde o início mas de certeza até ao fim.
    Beijo Uva

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    1. Weeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee! Bezinha linda. E macaquitos? Tudo nas férias não é?

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    2. Por enquanto, só ele zarpou, lá está feliz e contente a dar cabo do pirulito aos avós. A mais nova vai domingo e eu morro para aqui de saudades.

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  7. Noto um certo cansaço, saturação e alguma desilusão, mas Uva, os escitores, os músicos, os fotógrafos e todos os criativos têm os seus momentos mas quem sofre de paixão crónica volta sempre ao local do crime. Vai acontecer contigo. Assim o espero pois seria uma perda que deixasses de escrever. Quanto mais não seja para ti propria. Beijinho grande

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    1. Notas nada! Shiuuuu.
      Amanhã vou a um trail nocturno em Azeitão. Queres um Moscatel?

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    2. Manda vir! E já agora umas tortas. Marcha tudo :)))

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  8. Boas,

    Bom, isso é que é estar na mó de baixo, não concordo com isso de escreveres mal. ser perfecionista (não o sou, mas conheço quem seja) deve prejudicar imenso o processo aqui e no trabalho. não escrevo mais vezes para não escrever coisas que não me soam bem, apesar do que escrevo não ser nada mais do que banalidades, mas existem algumas chafaricas onde ainda se lêem bem e com alguma gente, pouca é certo.
    Continue a escrever mais simples ou mais perfeito, escreva que cá estaremos para ler, não se preocupe com muito, não somos exigentes, há muito tempo que cá venho mas sou à pouco é que "aderi", continue.

    E daqui a um mês estarei no Alentejo como faço questão de quase todos os anos ir e se a percebo.
    Força

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  9. Eu acho que voltaste mais inspirada que nunca. Que saudades deste rio tão cheio de tudo.

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  10. Minha querida Uva, vou responder-te: Proust podia dar-se ao luxo de escrever dentro de uma sala de cortiça porque não tinha de assegurar as refeições da família, não tinha que cumprir um horário das 9h às 21h, porque não tinha de lavar nem engomar nem limpar os ranhos, nem baixar as febres, nem embalar filhos, nem fazer mezinhas, nem rezar á cabeceira de familiares doentes nem cuidar de ninguém.
    Talvez até eu esteja a ser injusta porque não sei nada sobre a vida de Proust, mas digamos que estendo as minhas declarações a muitos "prousts" desta vida.

    Uva, faz uma coisa: continua a escrever. A tua essência é escrever, não é? Então escreve.
    Há mais gente que gosta. E estamos aqui.

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