4 de outubro de 2016

Da identidade revelada

Pois parece que foi desta que a identidade da brilhante escritora 'Elena Ferrante' foi desvendada.
Gostei de a conhecer, sou sincera, olhei para ela e não pude deixar de pensar que sim, que me faz sentido conhecê-la, como me faz sentido saber quem foi Kant, Proust ou Dostoiévski, mas se ela publicasse mais duas ou três obras como Elena Ferrante e não como Anita Raja (uma suposta tradutora romana nascida em 1953, filha de um magistrado napolitano e de uma professora de alemão de origem polaca), era mais ou menos indiferente, por agora.
A questão é que várias vozes se levantaram contra aquilo a que chamaram de 'um atentado à vida privada da autora'.
Sim, posso concordar em parte com isso, com o facto de Elena Ferrante [ou Anita Raja] ter preferido o anonimato durante todos estes anos, homonimizando-se em Elena Ferrante, escondendo-se atrás de e-mails, de entrevistas telefónicas, quem sabe como golpe publicitário, quem sabe se por sofrer de alguma fobia social.

Mas (e já referi isto aqui no Uva, várias vezes):

Nunca tive especial interesse pela identidade ou pela vida dos escritores, ou antes, nunca escolhi um livro por gostar ou não gostar, pessoalmente, da pessoa que o escreve.
Sei muito bem (ou sabia) que a má ou boa personalidade, a sua vida passada, a sua vida presente ou as suas ambições do futuro, não lhe tiram a capacidade última de escrever uma boa história, um bom romance, uma obra prima.
Mas tenho vindo a mudar de opinião.
Porquê?
Porque a obra não pode ser afastada do artista, porque a obra é o artista, é a sua persona, porque a torna mais rica, mais espetacular, mais efervescente. 
Imaginemos um cenário dantesco. Hitler. A sua obra Mein Kampf  só foi entendida depois de sabermos quem ele era na realidade.
Afirmar que a qualidade de um escritor depende da sua biografia, subverte totalmente a razão objetiva para a compreensão da obra, e não é isso que quero dizer.  O que quero dizer é que é necessário saber a biografia para se entender a obra, não para a tornar melhor ou pior.
Mas que a sua biografia, as suas angustias, medos, anseios, crises e necessidades (próprias e do país) se espelham na obra, não há dúvida.

Resumindo:
Estou muito contente por saber quem é afinal Elena Ferrante. Se a história não se esquecer dela, vai ser fundamental para estudar a sua obra, saber quem ela foi de verdade.

6 comentários:

  1. Embora não valorize num livro
    nem a espectacularidade nem a efervescência
    estou de acordo contigo

    Elena Ferrante? então vamos lá saber
    quem me deste a conhecer

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  2. a obra pode resumir-se a uma reconstrução pessoal.
    "compreender" uma obra pode tornar-se um objectivo fútil.
    a obra não é um absoluto consciente do autor.

    em rigor, nenhuma acção é um absoluto consciente em quem quer que seja.

    aquilo que ocasionalmente aparenta tratar-se de registos autobiográficos muitas vezes mais não são que a riqueza da imaginação do autor. Recordo uma intervenção muito bem humorada de Rentes de Caravalho num pequeno auditório, quando esclarece a dado ponto ”nao, meu caro, isso foi tudo fruto da imaginação"

    de qualquer modo, se é desejo de alguém permanecer no anonimato, se não lhe é imputado qualquer crime ou suspeita, não vejo este acontecimento com bons olhos.

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  3. Não há confirmação alguma.
    Nas suas entrevistas por escrito disse várias vezes que o que importa é a escrita e não a pessoa. Não quer ser conhecida nem reconhecida.
    Para além de ser de um jornalismo muito pequenino e de ter ido contra a vontade de uma pessoa, houve devassa, esmiúcaram registos bancários. Uma falta de respeito imensa.
    Ao contrário de si não gostei nada de saber desta "notícia", mas cada um sabe de que é feito.

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  4. Um post sobre o MAAT? Sobreviveu às expectativas?

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  5. Há algum tempo estava a ver um quadro, a apreciar o desenho e o traço. Quem me mostrou o mesmo perguntou-me " e então o que achas?". Achei o quadro agradável, nada de deslumbrante mas bem feito, com bons traços, com talento.
    O autor do quadro? Adolf Hitler.

    Portanto eu já apreciei a arte dele e, sinceramente, há sempre a incredulidade de como ele poderia ter talento, como poderia gostar de cães, como podia comer, beber e ser humano em todos os sentidos.

    Ps: Há muito tempo foi-nos apresentado na faculdade um relato sobre o Hitler, escrito de tal forma que só falavam dos factos neutros da vida dele (pais, nacionalidade, o factto de ser emigrante, idade na qual entrou nos partidos, idade na qual se tornou um líder, etc) e omitindo a identidade dele. No final a questão de debate era se a pessoa nos parecia alguém agradável, trabalhador, empenhado, se sentíamos empatia por alguém assim ou se, em contrapartida, era alguém que não tinha nada a ver connosco, por quem sentiríamos antipatia e considerávamos má pessoa.
    Isto foi debatido e todos tivemos a percepção de uma boa pessoa. No final disseram-nos que tínhamos estado a falar da vida do Hitler.

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